Radar Cultura

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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DentroFora é jogo de espelhos

15/02/2010 -

Carlos Ramiro Fensterseifer estreou na direção brincando com espelhos. E fez boa figura, como se dizia nos tempos de antanho: DentroFora está indicada com justiça em praticamente todas as categorias do Açorianos 2009, concorrendo a melhor espetáculo, direção, ator, atriz, figurino, cenografia, iluminação e trilha sonora

Liane Venturella é Marie. Foto de Alex Ramirez

Algumas reflexões, para começar. Em 2008, Fensterseifer e Heinz Limaverde estrearam o ótimo O Gordo e o Magro Vão para o Céu, texto de Paul Auster dirigido por Nelson Diniz e Liane Venturella. Em DentroFora, o texto segue sendo de Auster mas Liane e Diniz atuam, enquanto Fensterseifer dirige. Mais espelho: O Gordo e o Magropropunha um ritmo aeróbico, tanto em movimento quanto em humor, já DentroFora é uma encenação claustrofóbica, com raros espaços para rir. Em OGordo e o Magro, os personagens se exauriam para erguer um muro – em DentroFora, a luta é por sair de dentro da caixa, do que se espera, da falta de comunicação. Em comum, os dois espetáculos exercitam a sofreguidão do verbo, explicitando a reverência confessa de Auster pelos labirintos de palavra propostos por Samuel Beckett.
No palco, existem duas cabines com porta transparente, criadas por Elcio Rossini. Uma das cabines é ocupada por Marie (Liane), outra por Jimmy (Diniz). Não há contato visual entre a dupla, mas eles conseguem conversar normalmente, o que já sugere o tom geral da peça: levamos todos a nossa vidinha, cada um no seu quadrado, sem atentar para o outro, mas nem por isso o jogo social – por pior que seja – se inviabiliza. Conversamos, convivemos, e a vida toca em frente, deixando que as convenções (e algumas raras contravenções, que ninguém é de ferro) ocupem os espaços dos nossos sonhos.
Os figurinos e a maquiagem de Marie e Jimmy, criados por Rodrigo Nahas, ajudam a enfatizar o estranhamento e o deslocamento da dupla. Liane usa peruca afetada, carrega na maquiagem no esforço de atribuir a sua fisionomia uma emoção que Marie talvez nem saiba se ainda tem. Diniz fica a meio caminho entre o presidiário e o palhaço de vaudeville, preso nas mesmas piadas, nas mesmas intenções, nos mesmos fracassos.
DentroFora acaba sendo, como seria de esperar, um espetáculo de atores. Diniz e Liane brilham, mesmo sujeitos à restrição de espaço e ao tom quase caricato que Marie e Jimmy exigem. O desafio, claro, seria bem esse: por baixo do exagero, da maquiagem pesada, da rotina que entorpece e dos gestos previsíveis que nos ajudam a viver, sob tudo isso garimpar humanidade e afirmar que os personagens que se vive na vida real escondem quem realmente somos.
Um espetáculo à parte é alternar o olhar entre Liane e Diniz quando eles não são o foco da cena. Na verdade, os dois são sempre foco de cena: mesmo quando não estão com a palavra, cada um deles segue construindo seu personagem e complementando, por reforço ou oposição, o que o outro está colocando. Ah: e a música de Álvaro Rosacosta e iluminação de Claudia De Bem acertam no tom também.

Nelson Diniz vive Jimmy. Imagem de Alex Ramirez

DentroFora atrai e conduz com eficiência e prazer o público para essa viagem de espelhos distorcidos, mas talvez Fensterseifer devesse fazer o que Marie e Jimmy tentam durante todo a peça – sair de vez da casinha, ousar. Um dos momentos de maior impacto é quando Jimmy e Marie fazem movimentos espelhados, obviamente não se enxergando. Esse recurso talvez pudesse ser mais usado – a dificuldade na realização certamente chama a atenção do público e pode sugerir que há momentos, sim, em que mesmo dentro de caixas podemos nos sintonizar uns com os outros. A cena final, por incrível que pareça, me pareceu distante do nível geral ótimo do espetáculo. Há, certamente, o problema da previsibilidade: qualquer um sabe que, de alguma forma, ou Jimmy ou Marie vão acabar saindo da cela. No caso, é Marie. Ela avança um pouco, mostra-se previsivelmente com medo da liberdade e… previsivelmente retorna à zona de (des)conforto de sua casinha. Dramaturgicamente, nenhuma novidade, mas talvez Fensterseifer pudesse “complicar”. A título de sugestão: e se Marie avançasse sobre o público. Nesse caso, a intenção não seria a de provocar a plateia, mas de fazer os espectadores verem ainda mais de perto a maquiagem caricata, dar um close no olhar de criança desamparada que Liane sustenta, derrubar a quarta parede no mutirão para derrubar a parede do isolamento. Seria como se o público se olhasse num espelho e se defrontasse com uma maquiagem borrada e olhos vazios.
O bom mesmo seria algo que Fensterseifer planeja: fazer algo como uma sessão dupla, juntando O Gordo e o Magro Vão para o Céu e DentroForana mesma noite, na mesma sala, para o mesmo público. Do diálogo entre os diferentes, sairia uma conclusão maior. O que acaba sendo a mensagem maior de DentroFora e a lição maior de qualquer vida.

Um comentário:

Gutto Szuster disse...

É uma pena que não consegui assistir o espetáculo dentrofora. Todo mundo falou muito bem dele. Fiquei muito curioso, mas infelizmente não deu pra ver.

Abração, Alvarão!